Povoado Miranga, em Estância, enfrenta colapso da pesca devido à poluição do rio Piauí

De
Pesquisador Paulo Marcelo
Jornalista, Intelectual Público, Pesquisador, Comunicador, Fotógrafo, Professor, Palestrante, Designer e Busólogo.

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Em agosto de 2025, o vozes365 esteve no povoado Miranga, na área conhecida como Maré da Bica, no município de Estância, sul de Sergipe, para apurar denúncias feitas por moradores sobre a degradação ambiental do rio Piauí. O cenário encontrado confirma aquilo que comunidades ribeirinhas vêm afirmando há anos: o rio, que antes sustentava famílias inteiras por meio da pesca artesanal, hoje já não garante alimento, renda nem segurança sanitária.

O rio Piauí nasce no povoado Palmares, em Riachão do Dantas, percorre áreas rurais e urbanas de vários municípios do sul sergipano e deságua no litoral de Estância, a cerca de 68 quilômetros de Aracaju. Ao longo desse trajeto, o curso d’água atravessa territórios historicamente ocupados por pescadores, marisqueiras e ribeirinhos que construíram sua identidade, cultura e subsistência em torno da pesca. Atualmente, porém, esse mesmo rio é apontado como poluído, impróprio para banho e cada vez mais inviável para a atividade pesqueira.

No povoado Miranga, os relatos se repetem e se complementam. A pesca, que antes acontecia diariamente, tornou-se escassa. Espécies tradicionais desapareceram ou surgem mortas, boiando na maré. O odor da água é forte, persistente, e o contato direto provoca alergias, coceiras e feridas na pele.

Genal, pescador da região, descreve a situação com preocupação. Segundo ele, áreas que antes eram ricas em ostra, sururu e outros mariscos hoje estão completamente improdutivas. Ele relata que o rio “está perdido” e que, se continuar como está, a pescaria não acaba apenas em Miranga, mas em toda a extensão do Piauí, já que a água percorre diversos braços e retorna por outros rios e canais da região.

Outro morador explica que há meses não consegue lançar rede na água. Relata que, em uma das tentativas recentes, encontrou vermes nos peixes e que animais domésticos, como cães e gatos, morreram após beber da água do rio. A comunidade afirma que não utiliza mais o rio para banho e que há preocupação com a venda de pescado na feira, já que o consumo pode oferecer risco à saúde da população urbana.

Durante a reportagem, foram registrados peixes mortos descendo pelo curso do rio. Moradores identificam espécies como baiacu, carapeba, bagre, badejo e arraia entre os animais encontrados sem vida. O relato coletivo aponta para um processo contínuo de contaminação, não para um episódio isolado.

A suspeita dos moradores recai sobre o despejo de dejetos industriais e resíduos químicos. Embora evitem citar empresas específicas, eles mencionam a presença de indústrias de beneficiamento de frutas, fábricas têxteis e outras atividades econômicas na região. O sentimento predominante é de impotência. Segundo os pescadores, mesmo quando há licenças ambientais concedidas, os impactos recaem sobre quem vive do rio, enquanto os benefícios ficam concentrados em poucos setores.

Sivaldo, morador do Miranga há mais de três décadas, afirma que pescou no mesmo trecho do rio por cerca de 25 a 30 anos. Hoje, segundo ele, não há mais vida suficiente para garantir o sustento da família. Relata que, quando tenta pescar no local, não encontra peixe algum, apenas água turva e sem sinais de biodiversidade. A sobrevivência da família, diz, depende de ajuda de parentes, já que a pesca deixou de ser viável.

O impacto da poluição vai além da renda. Ele atinge diretamente a segurança alimentar, a saúde e a continuidade cultural da pesca artesanal. Em praticamente todas as casas da comunidade há alguém que dependia da maré. Antes, bastavam poucos quilos de pescado para garantir comida e alguma renda. Hoje, os pescadores precisam se deslocar por horas para outras áreas, gastando mais com combustível e retornando com cada vez menos peixe.

O que se observa no, Miranga não é um caso isolado. Em reportagens anteriores realizadas na Rua da Palha, comunidade quilombola localizada em Santa Luzia do Itanhy, e no Porto D’Areia, também em Estância, moradores relataram problemas semelhantes. Em todas essas localidades, o rio Piauí aparece como eixo central da crise ambiental, afetando diferentes comunidades ao longo de seu percurso.

Nas três comunidades visitadas ao longo da série de reportagens, há um ponto em comum destacado de forma unânime: segundo os moradores, não há presença regular de autoridades públicas, nem de órgãos ambientais, nem de representantes políticos para dialogar diretamente com a população e apresentar soluções concretas. Também afirmam que raramente equipes de imprensa estiveram no local para ouvir os relatos de quem vive a realidade do rio no dia a dia.

Apesar da gravidade da situação, o rio Piauí permanece ausente do discurso oficial que promove Estância como cidade histórica e turística. O município divulga suas “sete maravilhas”, seus monumentos e seu patrimônio cultural, mas convive com um rio poluído que corta a cidade e passa próximo a áreas históricas, sem que isso gere o mesmo nível de atenção pública.

Há uma contradição evidente entre o discurso ambiental difundido nos meios de comunicação, que frequentemente responsabiliza o cidadão comum por práticas individuais como economizar água ou reduzir o consumo, e a realidade enfrentada por comunidades que sofrem os efeitos diretos da poluição causada por atividades de grande escala. A crise do rio Piauí evidencia que a degradação ambiental não é resultado apenas de comportamentos individuais, mas de decisões políticas, modelos econômicos e prioridades institucionais.

Especialistas e movimentos socioambientais apontam que hoje existem tecnologias capazes de conciliar produção industrial e preservação ambiental. O problema, portanto, não é técnico, mas político. Falta fiscalização efetiva, transparência nos processos de licenciamento e, sobretudo, vontade de enfrentar interesses econômicos quando estes entram em conflito com o direito à vida, à saúde e ao meio ambiente equilibrado.

O que esta reportagem revela não é uma novidade. O estado do rio Piauí já foi denunciado anteriormente, registrado em relatórios, mencionado em debates públicos. O que chama atenção é a permanência do problema. Quando uma crise ambiental atravessa décadas sem solução, ela deixa de ser apenas um problema ecológico e passa a ser um retrato da forma como determinadas populações são historicamente negligenciadas.

No Miranga, na Rua da Palha, no Porto D’Areia e em outras comunidades ao longo do rio, o sentimento é de invisibilidade. São territórios lembrados em períodos eleitorais, mas esquecidos no cotidiano das políticas públicas. A degradação do rio compromete não apenas o presente, mas o futuro, afastando as novas gerações da pesca artesanal e empurrando famílias para a migração forçada e para a precarização da vida urbana.

O rio Piauí segue seu curso até o mar, carregando não apenas água, mas histórias interrompidas, modos de vida ameaçados e uma dívida ambiental que permanece aberta. Enquanto isso, as comunidades seguem esperando não por novos diagnósticos, mas por decisões concretas que devolvam dignidade a quem sempre viveu do rio.

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Jornalista, Intelectual Público, Pesquisador, Comunicador, Fotógrafo, Professor, Palestrante, Designer e Busólogo.